"UMA MENTE QUE SE ABRE A UMA NOVA IDÉIA, JAMAIS VOLTARÁ AO SEU TAMANHO ORIGINAL" [...]

terça-feira, 22 de julho de 2008

DIREITO & LITERATURA: O DISCURSO LITERÁRIO COMO PROPOSTA PEDAGÓGICA AO SABER JURÍDICO





Por Rafael Corrêa




RESUMO

O presente estudo parte da existência doutrinária da relação entre direito e literatura para pleitear uma nova visão acerca do discurso jurídico; e em especial propor que a literatura – enquanto manifestação expressiva humana - atue de forma pedagógica à sociedade, no que refere-se ao direito. Tendo em vista a crescente e veloz evolução social que assistimos hodiernamente, faz-se mister o surgimento de um sustentáculo que aproxime os membros da sociedade que restam alijados ao saber jurídico. Retirando sua aura de superioridade e intocabilidade, conceberemos o direito e os preceitos constitucionais das garantias fundamentais como um saber palpável à esfera social, como um todo.
Nesta esteira, objetivaremos a já citada visão “renovada” acerca do direito, sustentada por meio da literatura, buscando uma maior e real efetivação de seu saber. Sendo assim, elaborar-se-á, de forma sucinta, uma (re)construção epistemológica do saber jurídico, e de como é necessária uma conscientização geral por parte dos intitulados “operadores” do direito de que tal reconstrução é faticamente necessária.

PALAVRAS-CHAVE: direito; literatura; discurso; sociedade; direitos fundamentais.

1 - INTRODUÇÃO

Se atualmente, em nossos afazeres contemporâneos, dedicarmos alguma parcela de tempo de nossa rotina à reflexão acerca da realidade do direito – no que se refere a sua efetividade -, e talvez mais ainda, acerca de nossa própria realidade, muito provavelmente nos depararemos com uma perspectiva despojada de modificações, de melhorias, ou ainda, simplesmente carente, por não ser “alvo” de pensamentos ou projeções acerca de sua problemática, de forma constante.
Essa falta - assim expressa não somente como uma “falta de atenção” relacionada a uma determinada situação - exprime também a nossa aparente incapacidade de compreender e observar a semelhante característica humana presente em cada indivíduo, em cada pessoa inserida na esfera social. Tal incapacidade não afeta apenas nossa existência comum cotidiana, mas também as diversas “ciências” que permeiam nossa relação social: a política, a economia, a sociologia, a psicologia, entre tantas outras, dentre as quais encontramos, obviamente, o direito.
Quando supomos um possível diálogo entre o discurso jurídico e o discurso literário, e que tal “fenômeno”, por assim dizer, traria para a ciência jurídica uma série de benefícios no que se refere a sua práxis, não apenas queremos nos referir a uma forma de “(re)construção” benéfica da aplicação da esfera teórica jurídica, mas também pretendemos, através da lente literária, transformar a referida incapacidade de ver o próximo como realmente humano em uma realidade antagonicamente diferente.
Martha Nussbaum, ao citar o conhecido poeta norte-americano Walt Whitman, refere-se a esta mudança benéfica da compreensão político-jurídica acrescida do discurso literário:

“Con frecuencia em la vida política atual nos sentimos incapaces de ver al prójimo como plenamente humano, como algo más que ‘sueños o puntos minúsculos’. Esa falta de compasión vá también com frecuencia acompañada por uma confianza excesiva em los métodos técnicos para modelar la conducta humana, sobre todo los que derivan del utilitarismo econômico. Tales modelos pueden ser muy valiosos em su lugar, pero suelen resultar insufucientes como guia para las relaciones políticas entre los ciudadanos. Sin la participación de la imaginación literária, afirmaba Whitman, ”las cosas son grotescas, excêntricas, infructuosas’. (...) Nace de la convicción, que conparto com Whitman, de que la narrativa y la imaginación literária no solo no se oponen a la argumentación racional, sino que pueden aportarle ingredientes esenciales.” (1997, p. 15)[1]
Este apelo de alteridade feito por Nussbaum, no entanto, não é o único objeto do presente estudo: também nos referimos à possibilidade de uma compreensão ampla do direito, no que tangencia a concepção de direitos fundamentais, para a sociedade civil, como uma forma palpável para o reconhecimento de tais direitos por seus reais detentores.
O estudo interpretativo, mais uma vez, demonstra-se essencial em tal intento: mais do que uma nova forma de interpretação do discurso jurídico, o diálogo com o discurso literário permite uma abrangência hermenêutica maior, em termos de compreensão.
Sendo assim, tornando-se mais do que uma ferramenta interpretativa, a literatura poderá servir como ferramenta pedagógica no que se refere aos direitos fundamentais de uma sociedade como a nossa, observadora de um ordenamento jurídico dogmático e amplamente formal, dotado de uma completude[2] pretensiosa, e infelizmente ineficaz, por diversos fatores.
Mesmo que tal ordenamento jurídico – que é factualmente o caso do ordenamento brasileiro - seja dotado de um princípio unificador voltado para a proteção da pessoa humana e sua dignidade, dando ênfase, conseqüentemente, às garantias fundamentais; a sociedade brasileira ainda é tomada por princípios puramente materiais e individualistas, que passam a nortear as suas perspectivas de atuação.
Massificada em seu comportamento por tais aspectos, e dotada de interesses divergentes e particulares, a sociedade brasileira acaba por comprometer sua participação na esfera pública, tornando praticamente irrelevante a sua relação com a política.
É importante também salientar que, além de ser sustentada nos pilares supracitados, a sociedade brasileira é amplamente hierarquizada em seu aspecto organizacional, objetivando desta forma uma relação baseada em critérios de obediência, e não de harmonia e igualdade, como é o proposto pela norma fundamental de nosso ordenamento.
Neste aspecto, é deveras importante a crítica ministrada por Marilena Chauí, aqui exposta através da obra de Gisela Maria Bester:

“E, no caso da política, nós não trabalhamos com a idéia de representação. O político que está no posto não é pensado como nosso representante, que tem de nos prestar contas, mas como alguém que detém o poder de nos fazer um favor. Estabelece-se automaticamente uma relação de clientela, e o político estabelece com o indivíduo uma relação pessoal de tutela. É a impossibilidade da cidadania. Então, a possibilidade de uma política verdadeiramente democrática no Brasil passa por uma reformulação da sociedade brasileira: pelo reconhecimento da diferença; pela diminuição, no limite do possível, da desigualdade; pela aceitação do princípio liberal da igualdade perante a lei, e, portanto, da justiça como um pólo igualitário e da compreensão de que o poder político é o exercício de uma soberania social, e não de um poder que se separa da sociedade para controlá-la.”[3]

É neste confronto fático que a literatura emerge como opção benéfica para a construção de uma ponte entre a esfera teórica e prática do discurso jurídico, e, até mesmo, mais do que isso: como um instrumento pedagógico capaz de conscientizar a sociedade da existência factível de direitos fundamentais.
Compreendendo a existência de tais direitos, sua formação e disposição, tornar-se-á palpável à sociedade civil a constatação de que cabe também a si compor um “tijolo” na construção da ponte supracitada, trazendo a perspectiva prática do discurso jurídico para sua realidade factual.
Não objetivamos apenas mostrar que o povo, em seu sentido real[4], é detentor de direitos, mas também conscientizá-lo de que é sua função contribuir na construção real da esfera prática do direito, sobretudo no que se refere às garantias fundamentais e sua eficácia, proposta no presente estudo.
Diante das perspectivas expostas, necessitamos ainda confeccionar duas breves análises a respeito dos seguintes questionamentos: por qual motivo o direito pode ser observado e interpretado pela manifestação artística? E ainda, por qual motivo a manifestação conhecida como “literatura” é colocada como apta para tal destinação?
Elucidando a primeira questão, é fático que o direito trata-se de um estudo humano, projetado faticamente nas relações dos homens entre si, ou ainda, com o que se encontra ao seu entorno. Partindo desta concepção, podemos ponderar seguramente que o direito é factível, palpável na esfera social.
Um grande exemplo disto é o objeto de estudo da sociologia jurídica, que procura observar o fenômeno jurídico como fato social, utilizando-se também de outros “ramos” do conhecimento humano para compreender como o direito é observado ontologicamente fora da esfera jurídica.
Desta forma, podemos usar como ponto de partida a proposta de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy:

“Proponho admitir que a Arte, enquanto manifestação da expressão humana, possa exprimir opiniões a propósito do Direito. Porém a Arte não é monolítica. Fraciona-se numa miríade de formas expressivas, ad instar da Pintura, da Música, da Escultura, da Literatura, entre outras.”[5]

Sendo assim, elucidamos com clareza a primeira questão, reconhecendo que tanto o direito quanto a arte possuem a mesma essência ontológica: a manifestação expressiva através do homem.
E quanto à segunda questão? Admite-se perfeitamente que a manifestação artística pode nos dizer muito a respeito do direito; mas então por qual motivo deve-se privilegiar a literatura em tal intento, e não as artes plásticas, a música e o cinema, por exemplo?
Também é fato que a literatura possui um modo peculiar de “tocar” as pessoas. Através da narrativa literária, nos inundamos de sentimentos e ideais providos por ela; identificamos-nos com a história contada e, em muitas vezes, tomamos tal narrativa como uma espécie de “vida” ou “existência alternativa”, fruto da reflexão proporcionada em nosso interior.
Em diversos momentos aprendemos com as experiências dos personagens de um conto, de uma romance, ou de qualquer forma literária, nos colocando em seus lugares, ativando desta forma nossa imaginação e percepção em relação à realidade que nos cerca[6].
Aristóteles já nos ensinava, há mais de vinte e três séculos, que a história apenas nos mostra o que havia de fato acontecido, como as coisas aconteceram; enquanto as obras literárias oferecem a possibilidade de nos mostrar como tais fatos poderiam ter se sucedido. [7]
A literatura tem muito a nos dizer, seja sobre o mundo, a sociedade ou nós mesmos, e possuímos vários exemplos disto. [8] Hermann Hesse, ilustre escritor alemão, que teve sua pena perseguida durante o regime do III Reich[9], demonstrou a neurose do homem e do mundo entre guerras no fabuloso e profundo “O Lobo da Estepe.”[10]
Freud valeu-se de antigos mitos e da linguagem literária para fixar o sistema dinâmico da psique humana formada pelo id, ego e super-ego.[11] Assim também o foi quando o mesmo utilizou a verdade metafórica contida na obra “Fausto”, de Goethe, para elucidar a manifestação de uma neurose, cujos fundamentos pareciam provir de um viés demoníaco.[12]
Portanto, a literatura serviu de pressuposto principiológico para fomentar o solapamento de diversas teorias sobre o homem, seu teor subjetivo e o meio no qual está inserido. E será através dela – literatura - que pretenderemos objetivar uma análise pedagógica a respeito dos direitos fundamentais, direcionada à sociedade civil.
Por fim, trataremos dos métodos interpretativos que julgamos essenciais para a compreensão e observação da ciência jurídica e de sua Lei Fundamental: a Constituição.
Apoiados na necessidade de conhecimento da Carta Magna, essencial para a compreensão dos direitos fundamentais, iniciaremos uma tentativa de (re)construir a “delineação” do direito, de forma tripartida.
Em princípio, agregaremos a idéia foucaultiana de exclusão do sujeito ante o conhecimento do discurso às proposições sistêmicas de Bordieu e Lühmann, a fim de elencar a colocação do indivíduo face ao conhecimento jurídico e como a literatura pode transformar tal realidade. Neste instante, observar-se-á a necessidade de uma nova consideração epistemológica acerca do conhecimento jurídico; bem como uma nova consideração acerca dos direitos fundamentais, sob um viés sistêmico e autopoiético.
Por conseguinte, aliaremos as proposições interpretativas de Ronald Dworkin e François Ost para formular dois conceitos que podem amplamente contribuir para a alteração da realidade hodiernamente exposta: um versa sobre a atuação do operador do direito, e como uma interpretação jurídica sustentada por princípios literários pode auxiliar na (re)construção epistemológica do direito; o outro, basicamente uma conseqüência acerca do primeiro conceito exposto, tratará de uma nova “visão” acerca do discurso jurídico, baseada na premissa sustentada por Ost.
Enfim, tomaremos como escopo conclusivo a idéia de imaginário público, pleiteada por Nussbaum, para expor de forma correta como o imaginário social pode contribuir na compreensão do direito.
Assim, pretendemos mostrar não somente a relação hermenêutica do direito e da literatura; mas também que esta última é capaz de auxiliar pedagogicamente a transformação do discurso jurídico, em prol de sua efetividade e da otimização da realidade social.

2 – DIREITO & LITERATURA

Tendo analisado de forma introdutória a proposta do presente estudo e as problemáticas a que ele se refere, é chegado o momento de elencar a relação fática e específica entre o discurso jurídico e o discurso literário, quais são suas interfaces, e quais são os benefícios atrelados a tal diálogo.
Neste ponto, não limitaremos nossa análise a um só período, mas de certa forma passaremos nosso “foco perceptivo” através da história humana, ora retomando ao discurso filosófico grego, ora observando a manifestação do fenômeno “direito & literatura” através da modernidade e da contemporaneidade.
Primeiramente, observaremos o direito formal e positivista, visão que procuraremos de forma humilde e fundamentada, criticar. Por conseguinte, analisaremos a literatura, pontuando as diferenças primárias existentes entre os dois discursos e a forma como a arte literária pode engrandecer a compreensão e a aplicação de um direito, destituído “parcialmente” do formalismo dogmático positivista.
O direito – ao menos no que diz respeito à contemporaneidade - foi compreendido pelo homem como uma espécie de ciência analítica, observada como uma questão factual[13], que pretende solucionar a diferença existente entre o aspecto de “ser” e “dever-ser” da ciência jurídica.
Este dogmatismo formalmente positivista[14] demonstra a tentativa do direito em manter-se distanciado da maioria das influências externas que encontram-se em seu entorno[15]. Tal tentativa transforma-se praticamente em “ataque” quando uma dita influência pretende subverter seu caráter essencial, ameaçando sua ordem e sua vigência. Assim foi com a “Teoria Pura do Direito” kelseniana, e assim o é quando se trata da relação explícita do direito com elementos externos e aparentemente heterogêneos à sua essência. Uma dessas influências externas e “subversivas” do direito, em sua visão puramente formal e positivista, é, seguramente, a literatura.
Se projetarmos tal perspectiva sob um viés não-contemporâneo, veremos que Platão objetivava parcialmente sua concepção de justiça desta forma. Na “República”, o pensador grego alerta para os riscos da poesia em fazer o homem retornar à infância: o certo seria banir os poetas da Cidade-Estado “ideal”, já que esta era regida por leis sábias, não devendo ceder espaço a uma arte que alimenta exclusivamente o prazer em detrimento de outros sentimentos da alma.
Em “Leis”, os legisladores da Cidade de Magnetes se opõem de forma similar à entrada de trágicos e poetas, admitindo-os somente com o devido exame de suas obras, decidindo as autoridades quais serão as aprovadas para a audição pública. [16]
Assim também manifestou-se, de forma mais concreta, na Idade Média, quando a Igreja Católica Apostólica Romana criou em 1559, através da chamada “Sagrada Congregação da Inquisição”, o “Index Librorum Prohibitorum”[17], que continha a relação de livros tidos como “perniciosos”, que fossem capazes de corromper fiéis ou até mesmo de ameaçar a dogmática religiosa vigente, que de forma lógica, abrangia o sistema de direito que vigorava em tal época.
Com o exposto, elencamos a possibilidade de observar o discurso jurídico como puramente formal, distanciado das influências reais que o cercam, eliminando desta forma a possibilidade de “ver” o direito também como elemento inserido na realidade social.
Em contraponto a tal visão, a literatura apresenta-se de forma livre e muitas vezes informal, no que diz respeito a sua estruturação. Enquanto o direito analítico procura estabelecer a titularidade de obrigações de uma pessoa, seguindo os parâmetros das convenções vigentes, a literatura mostra um descomprometimento neste aspecto: se o direito procura “acalmar” os anseios externos, em nome de uma pretensa segurança jurídica, criando “pessoas naturais” e “pessoas jurídicas”, a literatura cria seus personagens e instituições de forma desmedida, surpreendente e original, dando possibilidade ao conhecimento do novo, do desconhecido, apresentando novas maneiras de enxergar soluções para uma determinada problemática.[18]
Se retomarmos ao proposto na introdução deste estudo – que o direito e literatura partem da mesma essência ontológica, ou seja, da manifestação humana – veremos que ambos são “imaginários”.[19]
O direito formalmente positivista, em sua fixação em validar todas as suas normas, parte do “imaginário” para concretizar a norma fundamental do sistema jurídico: é um postulado hipotético que orienta a “obediência” à norma maior (Constituição), que por fim acaba por valida-lá.
Tal postulado não existe faticamente, não se encontra dentro do ordenamento jurídico: é o direito criando a sua realidade, a realidade na qual pretende agir, realidade a qual pretende validar.
Por isso, devemos concordar com François Ost, quando este afirma que o direito e a literatura são dois imaginários, que atuam na mesma esfera atributiva: a realidade do homem, permeada em sua relação social.[20]
Sendo assim, possuindo em tela a concepção de que a pretensa formalidade do direito analítico parte do imaginário, assim como a literarura, poderemos apresentar a doutrina já existente, que fundamenta as semelhanças e as relações entre direito e literatura em quatro pilares[21]: Direito da Literatura (relações jurídicas que ascendem da prática literária, referente à autoria e outros aspectos); Direito como Literatura (diálogo fático que permite compreender tanto o direito como a literatura em seus aspectos discursivos); Direito na Literatura (a visão do discurso literário sobre o discurso jurídico, geralmente manifestado sob um viés crítico); e Literatura e mudanças jurídicas (as mudanças factíveis no discurso jurídico, objetivadas através da literatura).
Como possuimos o intento de demonstrar as similariedades e a importância da “junção” da literatura e do direito, atentaremos de forma objetiva aos conceitos de que nos mostram o direito sob a ótica literária e as mudanças ocasionadas por tal visão.
De acordo com as lições propostas por diversos autores que estudam tal relação, a perspectiva da observação literária para com a ciência jurídica apresenta-nos “... o desenho dos operadores jurídicos e das instituições legais por meio da literatura.” [22]
Tal proposta é perfeitamente palpável e factível, se observarmos a manifestação literária na compreensão do homem: a comédia de Aristófanes intitulada “As Vespas”, datada de 422 a.C., satiriza o sistema jurídico ateniense, como assevera Moraes Godoy:

“Aristófanes satirizou os tribunais de júri de Atenas, imaginando a figura de uma velho que fazias as vezes de um juiz e que, trancado por seu filho, foi chamado a participar do tribunal pelos outros juízes, simbólicamente comparado às vespas. As falas indicam a visão cética e irreverente para com o mundo do Direito. Aristófanes se propunha a divertir, e o final de suas comédias era sempre inusitado.”[23].

De forma semelhante, podemos também encontrar a presença do direito, de forma ambígüa, nas peças de Shakespeare, como por exemplo em “O Mercador de Veneza”, história de um avarento que acaba condenado em um processo falso. A ambigüidade shakesperiana relacionada ao direito, como nos mostra Philippe Malaurie[24], refere-se ora a uma apologia, ora a uma crítica a respeito lei e sua pretensa clemência.
Na época renascentista, na qual o movimento humanista procurava desvincular as sombras do Medievo da conduta humana, encontramos a obra “Utopia” de Thomas Morus, datada de 1516, que ao criar um Estado ideal, criticou a formulação das leis e sua complexidade; a corrupção do judiciário; e a conduta interesseira dos “filhos de Têmis”, apontando seu olhar crítico contra os advogados.[25]
Dois séculos mais tarde, seriam sob as penas de Rousseau[26] e Beccaria[27] que a idéia da simplicidade das leis e sua ampla compreensão, bem como o comprometimento dos magistrados e advogados, iniciadas por Morus, tornariam-se fundamento para a devida concretização do Estado e da humanização do direito penal, respectivamente.
Dando alguns “passos” à frente, enxergamos em Dostoievski um maior “comprometimento”, por assim dizer, da literatura com a realidade de sofrimento e porbreza, como nos apresenta Malaurie:

“La vie de Dostoïevski est una vie de souffrances, communiant avec l’humanité la plus misérable: les pauvres, les bagnards, les criminels, les prostituées, les malades, les vaincus: les humiliés et les offensés, titre d’un ses livres. Son oeuvre est la compassion envers la malheur.”[28]

Basta observarmos uma de suas obras fundamentais, “Crime e Castigo”, para compreendermos a falta de discernimento proporcionada à seu personagem (Raskólnikov), um homem que sofre amplamente com a pobreza e a necessidade, em contraste com um ato criminoso que acaba de cometer.[29]
Franz Kafka também pode ser seguramente citado. Dotado de uma narrativa singularíssima, os romances de Kafka são dotados de surpresa e originalidade. Assim o é quando analisamos “O Processo”, datado de 1925, onde conhecemos a história de uma certo Josef K., julgado por um crime que ele mesmo desconhece. Umberto Eco, com seu “O Nome da Rosa”, também nos mostra a atuação inquisitória da Igreja, objetivando a sua relação com o direito, e como os membros de um certo mosteiro se relacionam com obras literárias.[30]
Os exemplos aqui elencados servem-nos de parâmetro para constatarmos o olhar crítico da literatura para com o direito. A partir de tais obras, – e poderíamos citar tantas outras, sem disvirtuarmos nosso escopo inicial – a crítica ao direito, aos seus operadores e sua instituições, modelou-se de forma factível, e contribuiu suficientemente para compreensão contemporânea do direito. Beccaria, por exemplo, foi uns dos primeiros a criticar o modo desumano com que o direito penal atuava. Sua obra serviu de base para a alteração deste cenário.
Deste modo, compreendemos o quanto a literatura pode acrescentar ao direito. Através da leitura literária, observamos de forma mais clara – mesmo que ainda metafórica – as falhas da estrutura jurídica, através da evolução histórica humana, chegando em nossa contemporaneidade. Assim o é quando observamos a seguinte afirmação:

“ A fisinomia do derradeiro estilo de conjugação entre o discurso literário e o jurídico remonta ao aspecto revolucionário e emancipador que a narrativa literária pode assumir. A literatura, (...) pode ser uma grande força motriz para propor e problematizar a alteração dos rumos sociais e jurídicos”[31]

Inundados com as idéias inseridas na narrativa literária, como já propomos, nos identificamos não somente com as personagens da história, ou com o enredo em si, mas enxergamos a nossa própria realidade, emancipando-a. Com o direito, nossa proposta corre no mesmo sentido: “É justamente essa possibilidade de libertação do fenômeno jurídico das amarras positivistas que o seguram diante da realidade social que o discurso literário nos permite”.[32]
A literatura é realmente capaz de aproximar a subjetividade humana do discurso jurídico. É interessante lembrar que, para milhares de brasileiros, cujos direitos fundamentais foram “esquecidos”, o texto constitucional também não passa de ficção.
O projeto para a construção da ponte entre os “direitos fundamentais teóricos” e os “direitos fundamentais reais e práticos” está parcialmente confeccionado. Falta-nos ainda trilhar os caminhos hermenêuticos necessários para transformar a literatura em ferramenta pedagógica fática à compreensão e conscientização das garantias fundamentais pela sociedade civil.

3 – A INTERPRETAÇÃO JURÍDICO-LITERÁRIA

As mudanças jurídicas proporcionadas pelo olhar crítico da literatura, em diversos momentos, foram singularmente importantes para a (re)estruturação do direito, em diversos âmbitos.
Ao iniciarmos uma análise hermenêutica, ou seja, uma análise referente ao estudo interpretativo do discurso jurídico através do discurso literário, invariavelmente confrontaremos um fundamento óbvio: a educação.
A formação educacional do homem é objeto fundamental para seu desenvolvimento. É ela a provedora inicial, por assim dizer, dos componentes essenciais para que os alicerces futuros de sua vida se formem.
É a educação o sustentáculo primordial para que, em tempo futuro, o processo interpretativo de um sujeito em relação ao discurso jurídico, por exemplo, seja concretizado de forma substancial.
Sendo assim, não poderíamos-nos furtar de expor uma excelente definição sobre tal tema, apresentada através da pena mágica do incrível filólogo e estudioso pedagógico alemão Werner Jaeger:
“Antes de tudo, a educação não é uma propriedade individual, mas pertence por essência à comunidade (...). Em nenhuma parte o influxo da comunidade nos seus membros tem maior força que no esforço constante de educar, em conformidade com o seu próprio sentir, em cada nova geração. A estrutura de toda a sociedade assenta nas leis e normas escritas e não escritas que a unem e unem os seus membros. Toda educação é assim o resultado da consciência viva de uma norma que rege uma comunidade humana, quer se trate da família, de uma classe ou de uma profissão, quer se trate de um agregado mais vasto, como um grupo étnico ou um Estado.
A educação participa na vida e no crescimento da sociedade, tanto no seu destino exterior quanto na sua estruturação interna e desenvolvimento espiritual; e, uma vez que o desenvolvimento social depende da consciência dos valores que regem a vida humana, a história da educação está essencialmente condicionada pela transformação dos valores válidos para cada sociedade.”[33]
Como visto, a educação é parte fundamental na estruturação da sociedade, e também na relação subjetiva do homem. Quando Jaeger nos ensina que a sociedade se assenta em normas escritas e não escritas que unem todos os seus membros, refere-se ao norte extremo de tal normatividade. Em uma comparação lógica e próxima, podemos conceber tal norte como a nossa Constituição, o elemento que une e orienta nossas relações.
Um de nossos objetivos, ao analisar o estudo interpretativo jurídico-literário para a sociedade civil, será também propor o reconhecimento de nossa Constituição como norte fundamental da educação, não apenas acadêmica ou jurídica, mas sim de forma geral, pois é nela que encontramos o cerne fundamental para as relações sociais e subjetivas.
Para grande parte da população, a ciência jurídica ainda é uma grande incógnita, por dois motivos ditos como básicos: pela seleção prévia e ordenada do discurso jurídico no meio social, e pela carapaça amplamente formal e técnica que reveste o discurso do direito.
Sendo assim, propor que a literatura seja mais do que um método interpretativo, mas sim uma ferramenta pedagógica, propomos, então, um novo olhar, uma nova observação do direito pelos seus receptores diretos, e não somente por seus operadores.
Deste modo, o discurso literário – como se observará adiante – é capaz de obrar na emancipação do sujeito, aproximando-o do saber jurídico e possibilitando-o a atuar em tal campo do saber.
Nesta esteira, podemos exemplificar tal desconhecimento através da afirmação de Germano Schwartz:

“Sobre o tópico, não é demasiado referir que, para muitas pessoas (os leigos, em especial), o sistema jurídico é uma caixa misteriosa. Um verdadeiro labirinto do Minotauro. Dela não se pode esperar nada, exceto uma aura de intocabilidade e de distanciamento do real. A constituição não foge desta percepção. Falta, portanto, uma maneira mais viável de comunicação entre constituinte e povo. A Literatura se propõe a construir tal caminho.”[34]

Como já expomos anteriormente, o direito, sendo um “produto imaginário” e considerado socialmente, encontra-se sempre inacabado, por assim dizer. Necessita de constante interpretação, de constante atualização. Se ignorarmos tal premissa, objetivaremos o direito para o passado, focado apenas no mens legislatore, para as condutas estagnadas prescritas em códigos e consolidações. Desta forma, faremos com o que o discurso jurídico esqueça-se de sua principal função: a construção e otimização do futuro. [35]
Destarte, poderemos seguramente prosseguir na apresentação do sistema interpretativo do discurso jurídico pela sociedade civil, apoiada no discurso literário, o que possibilitará o conhecimento benéfico e pluralista da Lei Fundamental de nosso país, fato que, por conseguinte, trará à tona os direitos fundamentais para a ótica de seus detentores.


3.1 – OBSERVAÇÃO SISTÊMICA E AUTOPOIÉTICA ACERCA DO DISCURSO JURÍDICO E DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Projetar a estruturação do conhecimento jurídico como um ente discursivo, analisando-o de maneira interna e externa, é mais do que a aplicação de metodologia observadora acerca de uma determinada área. Tal projeção possibilita uma análise sistemática do discurso, – e, em nosso caso, do discurso do direito - correlacionando-o com diversos outros “sistemas” existentes ao seu entorno.
As proximidades existentes entre a proposta discursiva e a proposta sistêmica nos dá aporte suficiente para analisar a estruturação do conhecimento jurídico, bem como a posição do indivíduo perante o direito e qual é sua real participação em tal esfera.
Nesta toada, Michel Foucault afirma a existência de um processo tipicamente excludente, que visa separar a integração do sujeito – aqui compreendido como membro da comunidade social – do discurso em si.[36]
Este processo, que a ótica foucaultiana dividiu em três estágios, exclui primeiramente a possibilidade de deliberação espontânea do sujeito sobre o discurso. Esta interdição o impossibilita de versar sobre qualquer tema, a qualquer momento; e automaticamente, propõe que somente um grupo seleto terá a possibilidade fática de tornar-se “agentes” do discurso, e objetivá-lo de forma autônoma.
Sendo assim, tal compreensão do direito como discurso possibilita-nos supor a existência de diversos outros discursos radicados na esfera social, tais como “discurso político”, “discurso econômico”, etc. Portanto, a sociedade seria permeada por diversos “campos” do saber humano, que agregados, formam o todo social, onde cada indivíduo movimenta suas relações, apoiados nestes vários campos existentes.
Assim é a ótica de Pierre Bordieu acerca da sociedade e do saber humano.[37] Desta forma, a junção dos campos específicos do saber acabam por delinear um sistema social, onde cada campo pretende agir autonomamente, regulando-se e relacionando-se com outros campos.
Cada campo, em sua estruturação interna, possui integrantes que movimentam o discurso de cada especificidade. Estes integrantes são os agentes supracitados, um grupo selecionado de diversas formas.
Segundo Foucault, estes agentes selecionados atuam formando a chamada “sociedade discursiva”, que distribui, por assim dizer, a manifestação de um discurso específico, sem que este perca a autonomia necessária para tal manifestação.[38]
A autonomia, segundo Bordieu[39], é outra característica inerente aos campos específicos do saber. Esta autonomia intenta delimitar o espaço esférico de um campo específico, onde internamente há, além da estruturação, a ação dos agentes que movimentam tal discurso, atuando e formando uma espécie de monopólio, que visa firmar a visão conceitual de tal campo. Relativo ao direito, faz-se mister o ensinamento de Schwartz:

“De fato, o campo jurídico de Bordieu é um elemento do campo social onde distintos agentes lutam pelo monopólio para dizer o que é o Direito. É o espaço onde atuam juízes, advogados, promotores, partes, e, também, toda a sorte de pessoas que detenham poder necessário para atuar neste campo.”[40]

Logo, se tomarmos por base a proposta de Bordieu, veremos que a participação de agentes externos - ou seja, agentes não incorporados ao campo do saber do direito - no discurso jurídico é de fato uma ilusão, justamente pela existência do monopólio supracitado. Em uma busca frenética de reconhecimento, os agentes externos – membros da comunidade social – “... intentam, pois, ocupar um espaço ilusório de notória influência sobre os demais participantes do campo jurídico.”[41]
Desta forma, retornamos ciclicamente à premissa fundamental de Foucault, ao afirmar a exegese da interdição do sujeito perante o discurso, perante o campo do saber que, no presente exemplo, trata-se do saber jurídico.
A limitação do sujeito, colocado como “externo” ao discurso jurídico, provém de seu desconhecimento acerca do referido campo de conhecimento. Como já foi exposto, apenas “operadores” do direito possuem a autonomia necessária para afirmar ou contestar o discurso jurídico.
A alienação do sujeito face ao conhecimento, face ao saber jurídico, o condiciona automaticamente à situação fática de “dominação”, por assim dizer.
A educação, a formação, enfim, a estruturação do conhecimento do indivíduo é a conditio sine qua non para a alteração de tal realidade, conforme assevera o Germano Schwartz, através das afirmações de Carlos Morales de Setíen Ravina:

“A formação adequada, a competência jurídica é extremamente necessária. Aqueles que desconhecem as normas jurídicas e o funcionamento dos tribunais restam alijados do jogo intrínseco ao campo jurídico. (...) Sem isso, o agente resta afastado da dinâmica decisória própria do campo jurídico, podendo dele participar, sim, porém na condição de dominado.”[42]

Haja vista que o conhecimento é “pedra fundamental” para a inserção e participação do indivíduo de forma palpável, no que refere-se ao discurso jurídico, deve-se então vislumbrar algo que atue como sustentáculo para tal elevação, para tal (re)construção do conhecimento jurídico externo, pois relegar apenas à esfera acadêmica a compreensão total do direito também pode ser considerado uma forma de seleção e exclusão, se considerarmos as proposições anteriormente expostas.
Então, onde poderá ser encontrado tal sustentáculo, capaz de auxiliar pedagogicamente a estruturação básica do conhecimento jurídico para os que encontram-se à margem da esfera do direito?
Acreditamos que - no que refere-se aos fundamentos básicos do direito e à compreensão mínima do ensejo constitucional inerente aos direitos fundamentais – a literatura possua o aporte necessário para configurar-se como tal sustentáculo. Basta considerarmos os inúmeros exemplos citados no presente estudo[43], formulados por diversos autores, que aproximam o discurso jurídico do discurso literário.
Através da crítica literária, e até mesmo das novas propostas resolutivas que dela surgem, a compreensão do direito tornar-se-ia mais palpável, mais “densa”. Tal compreensão, por sua vez, possibilitaria a interpretação dos diversos membros do sistema social acerca do discurso jurídico e da Constituição Federal. [44]
Todavia, após agregarmos a literatura como instrumento favorecedor da inserção e participação do sujeito acerca do discurso jurídico, é necessário que a interpretação proveniente do exercício literário, mesmo que levando em conta sua pré-compreensão, seja orientada doutrinalmente, para que não ocorram desvios imensos relativos à compreensão dos princípios fundamentais e gerais do direito.
Assim, pode-se propor que a teoria sistêmica lühmanniana, agregada à idéia de autopoiése desenvolvida a partir da proposta de Maturana e Varela, venha a atuar como “delimitador” interpretativo das questões jurídicas, por assim dizer.
A noção anteriormente exposta, de autoria de Bordieu, relativa à existência de diversos campos do saber, assemelha-se de forma sucinta à tese de Niklas Lühmann. [45]
Lühmann propunha, basicamente, a observação da sociedade e de sua constante evolução. Sendo assim, representar a sociedade como um grande sistema autodeterminado, formado pela existência de diversos outros subsistemas (equivalentes, de forma simples, aos campos do saber de Bordieu), traz uma possibilidade nova e otimizada de estudo dos elementos que compõe a esfera social.
Logo, o estudo da função de cada subsistema ocorre através da delimitação do mesmo[46]. Esta delimitação é amplamente benéfica, pois é através dela que se objetivará a interpretação literária de forma inicial: será esta delimitação que permitirá uma primeira análise do sistema jurídico, sem influências externas, para haja uma possibilidade maior de compreensão fática de seus princípios basilares e fundamentais, mesmo que de forma mínima, sob a ação auxiliadora da literatura.
Após esta primeira análise específica, que aumenta a chance de compreensão principiológica acerca do direito, a autopoiése mostra-se como elemento auxiliar na etapa seguinte da compreensão do subsistema do direito. Para o entendimento do conceito autopoiético, é deveras importante a afirmação que segue:

“(...) a autopoiese não é algo que nasce do nada e que acaba em si mesma. É, ao contrário, um processo de co-ligação entre as estruturas e os acontecimentos, transmudando-se em uma continuação temporal dos programas e particularidades específicas de cada subsistema. Uma verdadeira autofundação factual, dirigida à diminuição entre o tempo dos sistemas sociais (Direito e Literatura, p. ex.) e o tempo do sistema social em si.”[47]

Com a idéia de autopoiése agregada ao conceito de sistema, podemos conceber que o sistema social autopoiético é capaz de se “...autoreproduzir por intermédio de seus próprios elementos em uma lógica recursiva.”[48] É o mesmo que afirmar que os diversos subsistemas que formam o todo social são faticamente capazes de objetivar uma auto-regulação, uma auto-criação independente.
Ao mesmo que tempo que são dotados de tal autonomia, a teoria lühmanniana firmada na autopoiésis propõe que tais subsistemas sejam igualmente capazes de realizar uma interpenetração, objetivando uma relação dialógica entre si.
A visão sistêmica-autopoiética do direito traz consigo diversos benefícios. É esta perspectiva que permite a ampliação da observação – e, por conseguinte, da compreensão – da estrutura ontológica do direito, que ao mesmo passo que encontra-se em estado de independência, pode concretizar uma “troca” recíproca de informações com subsistemas externos, o que impossibilita a estagnação do discurso jurídico, auxiliando na sua atualização e organização.
Ao contemplarmos tal possibilidade sob o enfoque literário, observamos que a interpretação dos preceitos encontrados na Constituição, por exemplo, tornam-se mais acessíveis e mais limpos, se embarcados na interpretação prévia do sujeito, auxiliado – mesmo que de forma metafórica – pela literatura.
A possibilidade de que uma interpretação “jurídico-literária” seja orientada pela perspectiva sistêmica e autopoiética, garante que tal interpretação não atraque em um ponto desconexo e ignorado. É o mesmo que afirmar que tal interpretação se desenvolverá com uma certa “segurança”, uma vez que os princípios basilares do direito serão, ao menos, observados.
Será a literatura que objetivará a percepção linear de um texto jurídico, apoiado nos conceitos prévios e subjetivos do intérprete, que a posteriori, se comunicará com as diferenças existentes entre o texto em si e as conclusões perceptivas do observador[49]. Deste modo, o conteúdo normativo e prescritivo do direito não será considerado como razão fundamental em si mesmo, o que possibilita ao observador (sujeito; indivíduo; intérprete; membro da comunidade social; enfim, o homem em sua essência) compreender, mesmo que de forma mínima, o não escrito, o não explícito.
Estas vantagens propostas pelo discurso literário – a mais democrática das artes – inviabiliza uma interpretação única e padronizada, dotada de formalismo; adota, sim, um caráter plurívoco e liberal, ao mesmo passo que integram os membros da sociedade ao discurso jurídico e os elevam ao grau de fonte interpretativa.
Nesta linha de raciocínio, podemos utilizar o conceito proposto, mais uma vez, pela incrível observação interpretativa de Germano Schwartz, para delinearmos a importância da interpretação jurídico-literária sob viés sistêmico e autopoiético:

“Com isso, não se pode deixar de assinalar que a teoria autopoiética, utilizando-se aqui de uma licença literária, é, de fato, uma teoria autopoética, por conseguir dar um sentido palpável ao Direito e à Literatura quando estabelece o jogo sem fim e eternamente mutável da recursividade interna e da abertura cognitiva dos vários campos (sistemas) sociais, tudo isso permeado pelo fenômeno condutor e transgressor da comunicação inter e infra-sistêmica.”[50]

Portanto, ao agregarmos a idéia de Foucault (necessária para que se possa entrever a exclusão dos membros da sociedade em relação ao discurso jurídico) às perspectivas sistêmicas de Bordieu e Lühmann (que tornam aliadas as premissas dos campos do saber humano e dos subsistemas sociais autopoiéticos), procuramos objetivar, de uma forma obviamente particular, a participação da literatura na emancipação do sujeito e na configuração de sua autonomia, para que o mesmo possa participar da realidade jurídica e compreender de forma básica e mínima seus significados, proporcionando um conhecimento acerca de seus direitos fundamentais, apoiados em uma análise da Lei Fundamental que rege as relações da sociedade.
É fático que o saber jurídico necessita de uma reestruturação, de uma reconstrução, a ponto que possa acompanhar a evolução social sem ocorrer em um anacronismo constante.[51] Tal reformulação é necessária para que os direitos fundamentais, por exemplo, possuam a sustentação para sua real efetivação.
Encarar o conhecimento jurídico de forma sistêmica, desvinculado dos padrões titularmente formais e cartesianos, traz à tona a possibilidade de que os diversos “ramos” do direito (em especial, os direitos fundamentais[52]) passem a ser compreendidos também de forma sistêmica.[53]
Portanto, tendo objetivado de forma sintetizada o auxílio da interpretação literária, apoiada na perspectiva do direito como sistema autopoiético, é necessário agora uma análise do comportamento de um grupo de suma importância ao discurso jurídico: os “operadores” do direito, e como a interpretação jurídico-literária pode ser desenvolvida por eles.

3.2 – A INTERPRETAÇÃO ESTÉTICA E O DIREITO “CONTADO”.

No tópico anterior, observamos de forma fática a posição dos membros da comunidade social face ao saber jurídico; e como tais membros restam alijados do discurso do direito. Em contraponto, propomos que a literatura pode, de fato, atuar como uma espécie de “nivelador”, aproximando o sujeito do discurso jurídico e possibilitando-o de participar de tal esfera.
Orientado pela perspectiva literária, que mantém-se apoiada na proposta sistêmica-autopoiética, o sujeito será capaz de observar de forma otimizada os preceitos constitucionais, passando a possuir uma melhor compreensão acerca dos direitos fundamentais, por exemplo.
Desta forma, apontamos uma afirmativa comum: a presente necessidade de interpretação do discurso jurídico, não somente por sua sociedade discursiva, mas por todos os agentes que encontram-se ao entorno do subsistema “direito”.
Encontramo-nos em uma sociedade dotada de uma dinâmica surpreendentemente veloz, na qual fundamentos e, muitas vezes, valores, alteram suas funções e atuações. O direito, “ente” que pretende regular as relações subjetivas, tem de acompanhar tal dinâmica, sob o risco de tornar-se estático. Assim, enxergamos como fundamental a afirmativa que segue:

“O Direito não é norma jurídica – como quisera o positivismo jurídico. Ele é apenas um elemento sobre o qual o operador vai iniciar uma construção de sentidos. O Direito clama por uma teoria que, partindo do preceito normativo, saiba tecer o ‘pano de fundo’ para o meio social. A interpretação, de tal modo, torna-se imperiosa ao Direito (...)” [54]

Destarte, é necessário observarmos como a interpretação literária pode auxiliar os diversos operadores do direito – e, conseqüentemente, toda a sociedade discursiva do saber jurídico – no que versa sobre sua aplicação efetiva, e em um novo modo de entrever o discurso jurídico.
Neste ponto, é deveras útil a proposta da chamada “interpretação estética”, que nos é apresentada através dos ensinamentos de Ronald Dworkin:

“Proponho que podemos melhorar nossa compreensão do Direito comparando a interpretação jurídica com a interpretação em outros campos do conhecimento, especialmente a literatura. Também suponho que o Direito, sendo mais bem compreendido, propiciará um entendimento do que é a interpretação em geral.” [55]

Dworkin valoriza, de forma correta, a importância inegável da interpretação acerca do saber jurídico. Segundo ao autor, uma visão puramente formal da movimentação e da ação jurídica é, muitas vezes, incompleta e insuficiente. É o que ocorre quando, por exemplo, procura-se seguir a letra da lei de forma completa, ou ainda, quando busca-se validar um caso concreto de acordo com as proposições do ordenamento, ignorando o que há ao seu entorno.
Esta visão interpretativa, por vezes impotente, é facilmente observada na realidade jurídica brasileira. Em alguns momentos, os chamados “hard cases” tornam-se ainda mais complexos pela hegemonia de tal visão, de tal modo de interpretação.
Por este motivo, Dworkin apresentou como rota interpretativa “alternativa” a interpretação estética, e pelos mesmos pressupostos aqui apresentados, julgamos que tal estudo hermenêutico pode ser de fato benéfico aos juristas brasileiros.
O referido autor toma por base fundadora de sua hipótese estética a divergência existente entre os diversos modos de interpretação adotados por críticos literários.[56] Segundo Dworkin, muitos críticos questionam o modo de observar uma obra literária: uns pretendem compreender a mensagem implícita do autor; outros pretendem valorizar o caráter autônomo da obra, como se esta passasse uma mensagem por si, tendo o autor apenas a função canalizadora de tal mensagem, etc.
Assim, Dworkin propõe que tais críticos objetivam, na verdade, encontrar a melhor forma de observação, a melhor forma de enxergar a obra literária. Para o autor, esta é a proposta da hipótese estética, afirmando que “... a interpretação de uma obra literária tenta mostrar que maneira de ler o texto revela-o como a melhor obra de arte.”[57]
Logo, podemos agregar a perspectiva estética dworkiniana na interpretação jurídica. Se a literatura propõe que interpretemos uma obra de tal modo que possamos apreender o que há de melhor em si, projetando-a como “a melhor obra de arte”, o intérprete jurídico, por sua vez, também detém tal possibilidade de enxergar a norma jurídica como “obra de arte”, interpretando-a de um modo que a mesma revele o melhor de si.
A interpretação da norma, em suma, deverá ser projetada para a melhor resolução possível de um caso concreto, não apenas considerando a perspectiva hipotética da vontade do legislador ou os preceitos do ordenamento jurídico, mas agregando também a realidade em torno ao caso a ser solucionado.
Por óbvio, a hipótese estética traz consigo uma presente valoração da subjetividade do intérprete. Invariavelmente, cada jurista possuirá uma forma particular de melhor observar a “obra de arte jurídica”, levando consigo sua conceituação prévia, bem como carregando uma carga axiológica particular.
Se para alguns esta subjetividade é considerada “perniciosa”, tal qual uma árvore que gera frutos hipoteticamente desconhecidos, aos nossos olhos ontologicamente “metafóricos” tal subjetividade é justamente a melhor característica da interpretação estética.
Conforme exposto, uma padronização ou formalização de um método interpretativo acaba por gerar uma amarra incondicional ao pensamento jurídico, limitando sua interpretação a apenas um método ou regra.
Se, por vezes, os juristas pretendem um método interpretativo histórico, por exemplo, buscando encontrar a vontade do legislador e qual foi a “mensagem” que ele manifestou no momento da “criação” da lei, tais juristas estarão protegendo-se em uma carapaça de demagogia.
Será mesmo que o mens legislatore é compreendido? Ou será que esta tentativa “hercúlea” e sobre-humana dos juristas em retornar telepaticamente ao passado desemboca justamente na expressão fática de seus pré-conceitos acerca de determinados casos?
Será o magistrado capaz apreender uma vontade pretérita, ou será que a sua decisão baseada no mens legislatore trata-se apenas do que ele – intérprete e magistrado – e sua carga axiológica e subjetiva consideraram como válido? No fim, não será também esta uma forma estética e subjetiva de interpretação? Não terá o magistrado observado a norma como “obra de arte” e decidido de acordo com a sua pré-compreensão, afirmando que busca a vontade do legislador?
Buscar uma forma de melhor interpretar os preceitos jurídicos, trazendo consigo valorações próprias e subjetivas, distanciando-se de padrões e regras hermenêuticas formais e “únicas”: esta é, de forma basilar, a proposta de uma interpretação estética.
De forma similar caminha a teoria de “direito contado”, de François Ost. Segundo o autor, tal tese é uma espécie de contraponto ao direito estritamente analítico e formal, também fundamentada na ineficácia positivista.
Sendo assim, podemos perceber o auspício que Ost demonstra. Embora dominante e austero, o direito analítico – determinado de forma empírica e factual – não é capaz de compreender, por assim dizer, as miríades de comportamentos existentes. Logo, tal direito, tal saber jurídico, mantém-se também alijado da realidade subjetiva de cada homem, de cada membro da comunidade social.
Assim, possuímos a seguinte tela “caótica”: o sujeito alijado do discurso jurídico-analítico, por não deter o conhecimento e poder necessário para aprová-lo ou contestá-lo; e o discurso jurídico-analítico, por sua vez, alijado da realidade subjetiva, por não considerá-la e não compreendê-la.
Neste jogo, onde não há imbricação ou conexão alguma entre realidade jurídica e realidade subjetiva, é que ascende o “direito contado”, que não pretende fixar-se apenas no “dever-ser”, mas também em valorizar o raciocínio jurídico de forma livre, por assim dizer. Nestes aspectos, devemos observar as afirmativas de François Ost:

“(...), não é surpreendente que a teoria analítica do direito conceba o raciocínio jurídico segundo um modo formal e dedutivo, do qual a coerência lógica é o ideal, e o silogismo normativo, o modelo (“a lei aplica-se ao fato”). Inversamente , a teoria do direito contado, privilegiando o espírito do direito, preocupa-se antes com a “coerência narrativa” do raciocínio, e evidencia a importância da interpretação dos textos e da natureza argumentativa das discussões jurídicas (...).”[58]

Portanto, podemos descrever a aproximação das perspectivas de Ost com as de Dworkin, uma vez que ambos tentam – de forma sucinta – aproximar o direito da literatura, transformando a movimentação jurídica em narrativa jurídica.[59]
Ost ainda enumera mais alguns preceitos, segundo os quais é seguramente possível afirmar as virtudes do “direito contado” face o “direito analítico”. Além de observar o “espírito” do discurso jurídico, o “direito contado” não se atém em escalonamentos de poder, tal qual a ciência jurídica analítica. Ao contrário, ele propõe como prisma principal o homem enquanto ser, sua realidade e sua subjetividade, aproximando-se de forma palpável e destituindo a existência da tela anteriormente citada.
Deste modo, observamos que proposta estética e o “direito contado” não tratam de algo estritamente novo e prejudicial, pelo contrário: ambos são elementos necessários para que uma nova visão acerca do direito seja de fato formada. A consideração da hipótese estética, bem como o “direito contado”, podem fundamentar um novo olhar ao discurso jurídico, e consequentemente, formar uma nova forma de atuação, quiçá amplamente eficaz.
A conscientização dos “operadores” do direito é também fundamental para tal (re)estruturação epistemológica. Quando uma nova visão jurídica for de fato concretizada, deixaremos de ser operadores, mecânicos e retóricos do discurso jurídico.
Não mais enxergaremos o direito como um relógio ou uma máquina cartesiana, que atua de forma estritamente previsível e, quando diante de alguma complexidade, fecha-se ao externo, como se precisasse encontrar somente dentro de si a solução, em uma tentativa frenética de auto-afirmação.
Neste momento, deixaremos de ser operadores para tornarmos-nos construtores cotidianos do direito, não permitindo que este se torne anacrônico ou estático.
Deixaremos de ser mecânicos para tornarmos-nos pensadores, não mais procurando concretizar afirmações de forma automática diante de um caso fático, mas sim buscando em diversos lagos e terrenos – sejam eles formais ou não, literários ou não, metafóricos ou não – a melhor solução e a melhor eficácia do saber jurídico.
Deixaremos de ser puramente retóricos, não mais sustentando um saber enciclopédico uniforme, mas seremos sim “autores” heterogêneos, onde a “pureza” do direito será fruto de comprometimento, e não de hegemonia e teoremas pretensamente eternos.
Portanto, enquanto tal visão ainda carrega o adjetivo – que, para alguns, possui caráter pejorativo – de utopia, devemos lembrar que a realidade é construída por planos e intenções, que, em certo momento, não eram mais que pensamentos e (por que não?) sonhos. A sua concreção, enfim, é de nossa titularidade; e para tanto, devemos olhar de forma dessemelhante ao direito e, principalmente, a nós mesmos.

3.3 – O “IMAGINÁRIO PÚBLICO” E SUA IMPORTÂNCIA AO DIREITO

Conforme observamos, é imprescindível uma nova observação acerca do fenômeno jurídico, do saber do direito. Para tanto, pleiteamos a importância da interpretação estética (que valoriza a compreensão subjetiva da norma tal qual uma “obra de arte”) e da consideração do direito como narrativa, o que o aproximaria da realidade subjetiva da sociedade, e por conseguinte, auxiliaria na efetivação e concepção dos direitos fundamentais.
Em consonância, propusemos uma “conscientização” por parte dos juristas em geral, o que fomentaria um maior comprometimento e desprendimento de suas partes, agregando ainda mais efetividade ao discurso jurídico.
Neste instante, buscar-se-á demonstrar a importância de um imaginário presente no corpo social, que por conseqüência beneficiará de forma vasta o campo jurídico. Entretanto, devemos observar de forma especial esta concepção de imaginário.
Ao iniciarmos a presente “investigação” a respeito da relação existente entre o direito e a literatura, afirmamos que, por vezes, não compreendemos e observamos a característica humana presente em cada um, em todos que se apresentam ao nosso entorno.
Como seres humanos, possuímos uma dicotomia intrínseca à nossa existência: somos seres dotados de uma semelhança estética claríssima, exposta e facilmente observável em nossa pele, olhos, bocas, e tantas outras partes de nosso corpo. Contudo, ao mesmo passo que apresentamos tais paridades relativas à nossa essência enquanto “homens”, somos dotados de diferenças antagônicas, caracterizada pela subjetividade presente em cada um de nós. [60]
Tal subjetividade é o que nos diferencia, seja pelo modo de pensar, agir, ou ainda por tendências que possuímos de forma natural. Esta “semelhança-diferença” acompanha-nos desde nosso surgimento. A incapacidade citada não reside em nossa subjetividade, em nossa diferença, mas sim, em nosso comportamento.
Habitantes de uma esfera social em constante mutação, por vezes abdicamos de nossa “fraternidade” para dedicarmos atenção ao nosso próprio desenvolvimento, ou ainda, ao desenvolvimento de nossos próximos, tal qual uma família, por exemplo.
Assim, deixamos de compreender o próximo como semelhante, de forma fática. Sequer, por diversas vezes, conseguimos enxergar o que ocorre com pessoas que não partilham do mesmo circulo ou rotina que nós. Estas pessoas são por nós denominadas de “desconhecidas”, “estranhas”. São as “outras”, aquelas pessoas que não fazem parte de nosso convívio, e, portanto, tornam-se alvos de nossa indiferença.[61]
Tal indiferença de nossa parte – e aqui, assumimos o risco de uma generalização demasiada – é, invariavelmente, um dos elementos da banalização que nos cerca, seja ela direcionada a qualquer fato.
Não enxergamos no “próximo” nossa essência, nossa similaridade. Enxergamos (e isto quando, de fato, observamos realmente) uma situação com indiferença, sem qualquer manifestação. Ou ainda, quando objetamos tal diferença e esboçamos uma reação, somos travados pelos “mecanismos”, por assim dizer, da presente realidade, que não nos deixa sair de nossa esfera própria.
Firmemente, podemos conceber que, de certo maneira, relegamos a um segundo plano a nossa carga emotiva particular, em nome de nossa vivência e de um racionalismo, presente nos métodos que regem nossa sociedade, que demanda uma imparcialidade quase que imposta: devemos ser imparciais em todos os instantes, desde a participação política até a participação de um júri. Este viés “imparcial” gradativamente sentou praça em nossa rotina, e hoje somos quase que totalmente imparciais com tudo que nos cerca.
Este é o alerta proposto por Martha Nussbaum[62]; e ele é surpreendentemente conexo com nossa realidade. Tal indiferença atinge também o direito, campo do saber humano que destina-se, entre outros tópicos, a regular as relações subjetivas. Porém, se propomos que tal imparcialidade racional é tão perniciosa, onde poderemos encontrar um elemento capaz de solapar uma nova visão acerca da sociedade sobre si mesma?
Novamente, lançamos nossas cordas e ganchos à literatura. Conforme afirmamos anteriormente, o discurso literário possui um modo “especial” de tocar seus receptores: por vezes, nos identificamos imensamente com uma obra ou personagem, a ponto de agregarmos a experiência de tais personagens para nossa própria realidade.
Em diversos momentos, da mesma forma, fazemos florescer diversas espécies de sentimentos durante a leitura de uma narrativa: fomentamos piedade ao sofrimento injusto de uma personagem; angariamos a cólera ante a inescrupulosidade de outra; e assim por diante. Portanto, podemos afirmar que em alguns momentos, nos colocamos no lugar dos personagens, e passamos a apreender suas emoções e sentimentos, tais quais fossem nossas. Neste tópico, é fática a afirmação de Nussbaum:

“Al leer somos participantes interesados y preocupados, aunque carecemos de um conocimiento concreto acerca de nuestra posición em la escena que tenemos delante.”[63]

Assim, podemos compreender que a literatura pode fazer emergir a capacidade de nos colocarmos novamente no lugar dos que vivem ao nosso entorno, de apreender de forma contida seus sentimentos e aspirações.[64] É a literatura um dos elementos capazes de trazer à tona a idéia de “fraternidade” de forma clara.
Ao direito, os benefícios também são claros. Como tal campo do saber intenta observar a regular relações por vezes emotivas (matrimônios, crimes, contratos, etc.) a imparcialidade no momento de observação de um caso concreto pode trazer prejuízos para sua resolução.
Em momento algum intentamos propor que magistrados e juristas sejam tomados de assalto por emoções violentas, capazes de guiar, somente por si, um julgamento ou a resolução de um litígio. Acreditamos, sim, que a observação dotada de parcialidade – aqui, limitada à pré-compreensão do magistrado ou do intérprete - pode ser amplamente benéfica, pois além de possibilitar o exercício da subjetividade do intérprete, o libera de amarras interpretativas e formalistas.
Todavia, conforme o exposto, a literatura é apenas um dos elementos capazes de alterar a atuação da indiferença presente em nossa realidade; quiçá ela seja, infelizmente, o elemento dotado de menor força para tal intento. A sociedade depende também de outros elementos para tal transformação, e a maior pare deles parte de nós, de nossa conscientização.
Porém, a idéia de imaginário é, de fato, agregada diretamente à literatura. Este imaginário permeado na sociedade será capaz de “criar” novas resoluções e novas contestações; será através dele que a participação do corpo social em diversos campos do saber (sejam eles o direito, a política, etc) tornar-se-á mais palpável. Será também através dele que uma diferente visão acerca do direito possuirá mais um sustentáculo. Enfim, o ato de “criar”, proveniente do imaginário, poderá produzir diversas otimizações em nossa realidade.
Sua importância é amplamente observável. Assim, é necessário que tal idéia de imaginário seja de fato introduzida na esfera social e, para isso, enxergamos apenas um meio canalizador: a educação, nau fundamental na condução do homem sobre o oceano chamado sociedade.

4 – CONCLUSÃO

Ao longo do presente estudo procuramos investigar e demonstrar as relações existentes entre o direito e a literatura, e como tal diálogo manifesta-se na realidade subjetiva humana e jurídica.
Nesta esteira, intentamos propôs que a literatura, além de agente emancipador do discurso jurídico, pode atuar de forma instrutiva à sociedade, principalmente no que refere-se ao saber do direito. O discurso literário, como ferramenta pedagógica, obra nivelando e “elevando” o sujeito ao conhecimento jurídico, gerando o aporte necessário para sua participação em tal esfera e sua compreensão – ainda que mínima – dos preceitos constitucionais basilares, que desembocam nas garantias fundamentais tuteladas a cada um de nós.
Ao mesmo passo, traçou-se a necessidade de uma nova interpretação do direito, projetada tanto pela sociedade como pelos membros do “corpo” jurídico. Tal método interpretativo, consequentemente, revelou à luz de nosso olhar a importância de uma nova visão acerca do direito, e acerca de nós mesmos, enquanto juristas e eternos acadêmicos.
A lente metafórica e imaginária é capaz não somente de libertar o saber jurídico de grilhões formais, que padronizam seu exercício e sua movimentação, mas também é capaz de auxiliar o “vôo livre” da sociedade sobre si mesma, sem a presença de amarras que ela mesma criou, em nome de uma vivência racional e “segura”, inserida em uma esfera individual.
Enfim, o que basicamente (e humildemente) defendemos e propomos aqui foram mudanças. Mudanças acerca da visão jurídica, mudanças acerca da visão social, mudanças acerca da visão subjetiva e individual. Acreditamos que o saber – seja ele jurídico, político, econômico, artístico, etc – não deve atuar como segregador, como elemento de exteriorização do sujeito, mas sim como baluarte dos diversos princípios constitucionais e democráticos que regem nossa sociedade e nosso Estado (que não recebe a nomenclatura de “Estado Democrático de Direito” por mera questão estética).
Tais mudanças, entretanto, devem partir de todos nós. Como afirmava um nobre homem das letras, se “o mundo começa agora e apenas começamos”[65], devemos ter sempre em mente que tais mudanças são necessárias, e que são de nossa titularidade.
Todas as proposições aqui apresentadas conectam-se intrinsecamente, desde a afirmação da atuação crítica de certas obras literárias em relação ao direito e até mesmo da posição de exclusão do sujeito face ao saber jurídico.
Tal conexão, por sua vez, reforça ainda mais a idéia de que os diversos campos do saber humano não existem de forma totalmente autônoma, e procuramos projecionar tal afirmativa especialmente ao direito, procurando enxergá-lo não como um subsistema formado por “operadores”, mas sim por construtores e pensadores, que não procuram monopolizar o saber jurídico, mas sim considerá-lo em todo o seio social, de forma completa e desamarrada.
Por fim, no intento de idealizarmos esta perspectiva de mudança em diversos aspectos, subscreveremos o pensamento de Lucius Annaeus Sêneca, importante pensador estóico e precursor do gênero trágico na antiga Roma, procurando melhor exemplificar nosso “dever”, por assim dizer, como membros do Estado Democrático de Direito brasileiro e como povo real, que de fato somos, e nunca deixaremos de ser:

“Não deixeis a corrupção açambarcar o homem nem que as exterioridades o aliciem; admira-te e confia na tua coragem, pronto que estás para o que houver, artífice de tua vida. Que tua confiança não seja incidente e tua ciência firme; permaneçam estáveis tuas relações e inabaláveis teus princípios.”[66]

Deste modo, será “fechando nossos olhos”[67] que enxergaremos a presente necessidade de nos compreendermos mutuamente, coisa que, aparentemente, há muito se perdeu.
Não trata-se apenas de um resgate qualquer: quiçá um resgate afetivo, ou ainda, um resgate intrínseco e particular, que manifesta-se subjetivamente em cada um de nós.
Este resgate, invariavelmente, parte de nossos atos; e será através dos mesmos olhos fechados (“abertos” ao imaginário e ao novo) que observaremos nossa essência humana.
Se “dentro de nós há uma coisa que não tem nome, e esta coisa somos nós”, então, nada mais correto do que fecharmos nossos olhos e, finalmente, enxergarmos o óbvio e o implícito; o real e o metafórico; o formal e o livre; o direito e a realidade; e principalmente, nós mesmos. Afinal, de modo concreto e cíclico, estamos “apenas começando”.




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NOTAS DE RODAPÉ

[1] NUSSBAUM, Martha. “Justicia Poética: La Imaginación Literária y La Vida Pública”. Barcelona: Andrés Bello, 1997. Pág. 15
[2] Tal referência à completude como característica pretendida pelo ordenamento jurídico pode ser contemplada em Teoria do Ordenamento Jurídico, Cap. 4, de Norberto Bobbio. O conceito de completude refere-se ao aspecto amplamente completo de um ordenamento jurídico, onde não há lacunas ou espaços vazios: tal sistema jurídico regula todas as problemáticas propostas a ele, pois é dotado de normas direcionadas especificamente para cada comportamento social. Bobbio critica esta visão, demonstrando corretamente que o conceito de completude formal é essencialmente uma pretensão, tendo em vista a impossibilidade de um ordenamento estabelecer previamente e de forma imediata todos os comportamentos e casos que serão confrontados por ele.
[3] BESTER, Gisela Maria. “Curso de Direito Constitucional. Fundamentos Teóricos – Vol. I”. São Paulo: Manole, 2005. p. 286.
[4] CANOTILHO, J.J. Gomes. “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”. Coimbra: Almedina, 2002. p. 75. O professor J.J. Gomes Canotilho, ao tratar da titularidade do poder constituinte, nos traz uma boa conceituação acerca do “povo”: “Povo, porém, não é um conceito unívoco, mas plurívoco (F.Müller). Só o povo entendido como um sujeito constituído por pessoas – mulheres e homens – é o “ente” que pode ‘decidir’ ou deliberar sobre a conformação de sua ordem político-social. (...) O povo concebe-se como povo em sentido político, isto é, grupos de pessoas que agem segundo idéias, interesses e representações de natureza política.”
[5] GODOY, Arnoldo Sampaio de Moraes. “Direito & Literatura. Anatomia de um Desencanto: Desilusão Jurídica em Monteiro Lobato”. Curitiba: Juruá, 2002. p. 15.
[6] NUSSBAUM, Martha. Op. Cit. p, 30.
[7] NUSSBAUM, Martha. Op. Cit. p. 29. “Mi respuesta a la pregunta acerca de la historia, pues, surge directamente de Aristoteles. El arte literário, decía él, es ‘más filosófico’ que la historia, porque la historia se limita a mostrar ‘qué sucedió”, mientras que lãs obras literárias nos muestran ‘las cosas tal como podrían suceder’ en la vida humana.”
[8] MORAES GODOY, Arnoldo Sampaio de. Op. Cit. p. 28.
[9] Para uma melhor compreensão da relação entre os ideais do Nacional Socialismo alemão e a manifestação artística, ver “Arquitetura da Destruição”, documentário produzido em 1989 pelo cineasta sueco Peter Cohen.
[10] HESSE, Hermann. “O Lobo da Estepe”. São Paulo: Record, 1955.
[11] MORAES GODOY, Arnoldo Sampaio de. Op. Cit. p. 37.
[12] FREUD, Sigmund. “Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: O Ego e o Id e outros trabalhos.”Vol. XIX. São Paulo: Standard, 2000. p. 95.
[13] RONALD DWORKIN, em seu “Império do Direito”, apresenta-nos de forma crítica idéia de “direito como questão de fato”, onde a chamada “divergência empírica do direito” mostra-se como única situação relevante e de fácil resolução, quando existe alguma divergência entre o caso concreto e a decisão a ser tomada. Sendo assim, tal divergência empirista seria dissolvida pela simples consulta aos casos e sentenças que precederam o caso concreto, posto em questão. (São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 30)
[14] OST, François. Op. Cit. p. 41.
[15] FOUCAULT, Michel. “A Ordem do Discurso”. São Paulo: Loyola, 2008. p. 33. Foucault nos mostra que o discurso apresenta uma “resistência” aos elementos externos que o rodeiam. Tal resistência é denominada pelo autor como “disciplina”, um método de rarefação do próprio discurso, que, a priori, apenas agrega a si elementos externos que coadunam que o princípio norteador do ente discursivo. Foucault ainda utiliza o exemplo das teorias mendelianas, amplamente questionadas e tidas como inaceitáveis em sua contemporaneidade, mas hoje consideradas como pilares fundamentais do estudo compreensivo da biologia e até mesmo da genética.
[16] OST, François. Op. Cit. p. 10.
[17] “Índice de Livros Proibidos”, em uma tradução apropriada para o português.
[18] OST, François. Op. Cit. p. 15.
[19] Idem p. 18.
[20] OST, François. Op. Cit. p, 18.
[21] FACHIN, Melina Girardi. “Direitos Humanos e Fundamentais. Do Discurso Teórico à Prática Efetiva. Um Olhar por meio da Literatura”. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2007. p. 25 e seguintes.
[22] Idem. p. 25.
[23] MORAES GODOY, Arnoldo Sampaio de. Op. Cit. p. 49.
[24] MALAURIE, Philippe. “Droit & Littérature”. Paris: Cujas, 1997. p. 60 e seguintes.
[25] MORAES GODOY, Arnoldo Sampaio de. Op. Cit. p. 54.
[26] ROUSSEAU, Jean-Jacques. “Do Contrato Social”. São Paulo: Martin Claret, 2002. Livro II, Cap. VI. p. 44.
[27] BECCARIA, Cesare. “Dos Delitos e Das Penas”. São Paulo: Martin Claret, 2007. Cap. V. p. 24.
[28] MALAURIE, Philippe. Op. Cit. p. 256. “A vida de Dostoievski é uma vida de martírio, agregando a humanidade em seu aspecto mais miserável: os pobres, os criminosos, as prostitutas, os doentes; enfim, os humilhados e ofendidos, de acordo com um de seus livros. Sua obra é a compaixão marcada pela infelicidade” (tradução livre)
[29] DOSTOIEVSKI, Fiodor M. “Crime e Castigo” Rio de Janeiro: Editora 34, 2002. Mesmo que o presente estudo destine-se a observação própria da Literatura, recomenda-se também o filme “Nina”, de Heitor Dhalia, datado de 2004, cujo roteiro baseia-se na referida obra de Dostoievski, comparando-a com a problemática atual da sociedade brasileira.
[30] ECO, Umberto. “O Nome da Rosa”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
[31] FACHIN, Melina Girardi. Op. Cit. p. 32.
[32] Idem, p. 39.
[33] JAEGER, Werner. Op. Cit. p. 4.
[34] SCHWARTZ, Germano. “A Constituição, a Literatura e o Direito”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 75-76
[35] Idem, p. 18.
[36] FOUCAULT, Michel. Op. Cit. p. 9 e seguintes. A saber, conforme já foi exposto anteriormente, tal processo de exclusão possui três estágios básicos, compreendidos pela interdição, separação (rejeição) e vontade de verdade. Neste ponto, ateremos-nos apenas à idéia de interdição, para exemplificar a seleção de agentes aptos a objetivar o discurso jurídico.
[37] SCHWARTZ, Germano. Op. Cit. p. 28 e seguintes.
[38] FOUCAULT, Michel. Op. Cit. p. 39.
[39] SCHWARTZ, Germano. Op. Cit. p. 29.
[40] Idem, p. 33.
[41] Idem, p. 34.
[42] SCHWARTZ, Germano. Op. Cit. p. 34.
[43] Aqui, referimos-nos às comparações feitas com obras literárias, e como sua função crítica auxiliou na otimização do discurso jurídico.
[44] Assim é a proposta do jurista alemão PETER HÄRBELE, exposta na obra “Hermenêutica Constitucional – a Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição...”. Härbele objetiva que todos aqueles que vivem sob a égide constitucional de uma Carta Magna podem atuar como “pré-intérpretes” constitucionais, como se originassem uma nova fonte de interpretação constitucional. Para o autor, tal proposta é decorrente do caráter plurívoco e democrático apresentado por grande parte das sociedades atuais, chamadas por ele de “sociedades abertas de interpretação”. Entretanto, Härbele não intenta retirar a autonomia de outras fontes de interpretação constitucional existentes, mas sim, diminuir o seu monopólio, transformando os membros da comunidade social em intérpretes em potencial. A perspectiva häberliana coaduna com a presente proposta de objetivar a Literatura como alicerce na configuração sociedade, colocando-a como atuante na esfera do Direito, bem como no intento da (re)construção do saber jurídico, a fim de efetivar os preceitos constitucionalmente estabelecidos.
[45] TRINDADE, André. “Os Direitos Fundamentais em uma perspectiva Autopoiética”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 108 e seguintes. Acerca da proposta de Lühmann, é fática a observação do Professor A. Trindade, apoiada nas afirmativas de Germano Schwartz, Jean Clam e Leonel Severo Rocha: “A proposta da doutrina dos sistemas lühmanniana é a construção de uma teoria geral da sociedade que servisse de sustentáculo para uma observação criteriosa do meio social em tempos de complexidade elevada.”
[46] TRINDADE, André. Op. Cit. p. 110. Baseada na afirmação lühmanniana de que a sociedade é formada pela reunião de diversos subsistemas, é importante a lição do referido autor: “Essa delimitação dos subsistemas sociais – ou sistemas de segundo grau dentro do sistema social – permite a verificação dos seus elementos específicos, possibilitando o estudo destacado do Direito, sem interferências de estranhos as suas relações/comunicações.”
[47] SCHWARTZ, Germano. Op. Cit. p. 36.
[48] Idem, p. 36.
[49] SCHWARTZ, Germano. Op. Cit. p. 42.
[50] SCHWARTZ, Germano. Op. Cit, p. 42.
[51] Por não possuirmos o espaço necessário, não objetivamos de forma explícita como a reconstrução do saber jurídico pode ser originada. Para tanto, recomenda-se a já citada obra do Professor André Trindade, “Os Direitos Humanos em uma perspectiva Autopoiética”, onde, mais precisamente em sua segunda parte, ocorre a proposta para a reformulação do saber jurídico, da ciência jurídica, apoiada nas teorias sistêmicas aqui expostas (obviamente, sem a influência foucaultiana) e nas teses paradigmáticas de Thomas Kuhn e Karl Popper.
[52] Se tomarmos por base a idéia “evolução” de direitos fundamentais, encontraremos uma similaridade ao pensamento de desenvolvimento sistêmico-autopoiético. Assim o é quando observamos a exposição evolutiva de direitos fundamentais em gerações, por exemplo, como se encontra objetivada na obra “Eficácia dos Direitos Fundamentais”, de Ingo Wolfgang Sarlet (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008).
[53] TRINDADE, André. Op. Cit. p. 90.
[54] TRINDADE, André. Op, Cit. p. 42.
[55] DWORKIN, Ronald. “Uma Questão de Princípio”. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 217.
[56] Idem, p. 223.
[57] Idem, p. 222.
[58] OST, François. “Contar a Lei: As Fontes do Imaginário Jurídico”. São Leopoldo: Unisinos, 2005. Pág. 44.
[59] Assim o é quando Dworkin, em diversas obras, propõe que os magistrados, a cada decisão tomada, acabam por dar continuidade à narrativa, à história jurídica. Desta forma, o Direito seria “contado”, se o compararmos com a tese de Ost, tal qual um romance ou conto.
[60] ARENDT, Hannah. “A Condição Humana”. São Paulo: Forense Universitária, 2002. Cap I. p. 27. H. Arendt apresenta-nos tal dicotomia ao tratar dos elementos da vita activa, composta pelo labor, trabalho e ação.
[61] Tal indiferença é, muito provavelmente, fruto da realidade que atualmente vivenciamos. Em uma onda constante de inovações e aceleração de crescimento, adotamos métodos automáticos para “regrarmos” nossas vidas. M. Nussbaum, por exemplo, chamara estes métodos de “utilitaristas”, pois forneciam o aporte necessário para que a sociedade fosse conduzida de forma autônoma, fato que propiciaria uma real atenção de nossa parte para (e somente para) a condução de nossas vidas, em uma espécie de “jogo solitário”. Ainda que Nussbaum não versasse de fato acerca da sociedade brasileira, é óbvio que hodiernamente sustentamos uma indiferença assustadora ao que ocorre ao nosso entorno, desde que tais acontecimentos não nos atinjam de forma clara ou (in)direta.
[62] NUSSBAUM, Martha. “Justicia Poética: La Imaginación Literária y La Vida Pública”. Barcelona: Andrés Bello, 1997.
[63] Idem, p. 110.
[64] NUSSBAUM serve-se da teoria de Adam Smith para formular a idéia de segurança na observação da situação alheia. O “espectador juicioso” é aquele que atua inicialmente como espectador de uma situação, porém apreende o ocorrido para si, sem perder sua racionalidade ou consciência, como se tomado por uma cega emoção, mas sim por uma observação benéfica, sem imbricações na imparcialidade.
[65] Trecho de poesia intitulada “Metal contra as Nuvens”, de Renato Manfredini Júnior.
[66] Moraes Godoy, Arnoldo Sampaio de. “Direito & Literatura. Anatomia de um Desencanto: Desilusão Jurídica em Monteiro Lobato”. Curitiba: Juruá, 2002. p. 25.
[67] Referência à obra “Ensaio sobre a Cegueira”, do mestre português José Saramago.